Conto de Ninar
Amor, meu novo amor. Quero lhe contar uma história de
dormir. O farei enquanto sou assombrada pelo encanto de sua aparência maravilhosamente
fantasmagórica. Ela se funde com as sombras de uma madrugada iluminada pela lua
cheia, indo embora. Você me pega pelos ombros e me afasta, mas giro em meus
calcanhares para acompanhar sua saída com os olhos. Até a esquina onde
desaparece. Então meu sorriso de esvai.
Antes de começar a história verdadeira, amor, preciso lhe
contar sobre como não sabes o quão adorável és. Você me fitou por pouquíssimos
segundos e esquivou-se rapidamente, como se eu fosse toda a beleza sob o céu,
enquanto seus olhos cintilavam como galáxias, e seus lábios moviam-se como lava
– você era o fantástico, o esplendoroso, o especial. Vi em seus olhos âmbar o
que já esteve em meus olhos âmbar ao encarar um ser do inverno. E eu não sabia,
envolvida por seu cheiro doce, se estava pronta para tornar-me o que você
chamaria de “seu ser do inverno”.
Seres do inverno sugam esperanças com beijos. Eles são,
para suas vítimas, as criaturas mais belas do universo. Seduzem-nas sem mais
nem menos, quase sempre inesperada e magicamente, e lhes oferecem esperanças
sobre um futuro que nunca acontecerá. Imagens de si mesmas em frente a uma
montanha coberta de neve, correndo por uma floresta encantada, segurando sua
mão para afastar o medo. Imagens de livros, discos... imagens de uma vida
inteira. Como se permanecessem imutáveis e lhe transformassem no melhor de
você. Para sempre.
Quando sugam sua alma com toda a força, segurando a
vítima entre os braços, os seres do inverno morrem. Não por completo, mas quase.
Desaparecem, deixando seus reféns antes virgens de amor desesperados e loucos
como pássaros amedrontados. Eles sempre voltam. Uma, duas, três, quatro vezes.
Então vão embora novamente, carregando toda a sua esperança consigo. Nesse
ponto você se vê exausto, trêmulo, quase morto, mas respirando de alguma forma,
impulsionado por livros, pós-punk e álcool.
Nesse ponto, então, eu peço desculpas por ter-me tornado
um ser do inverno. E lhe conto que tudo o que sou faz parte de uma grande
fantasia. Tudo o que sou diante de seus olhos, ao menos. Meus devaneios são
frutos de pesadelos infinitos, noites incontáveis de um choro incessável e
tentativas vãs de viver do ócio. Não é adorável. Não é bonito. Não é possível
despertar-me emoções duradouras. E eu choro em seus braços inocentes pela morte
de outro alguém.
Oh, sim, amo um cadáver. Amo o cadáver de alguém que
esvaiu-se após quatro semanas. Da pessoa mais bonita, fantástica, literária que
se possa imaginar. Do ser do inverno que me deixou desamparada naqueles dias de
frio intenso, que pintou um céu azul e voltou para colori-lo de cinza. Do
alguém que me fez descobrir as melodias e letras mais maravilhosamente tristes
que existem no mundo. E que me fez escrever. E gritar em silêncio. E tentar
desvendar mistérios. Alguém que não existe mais.
Não quero, deus me livre, tomar-lhe o brilho. Nem roubar
quem és, nem deixa-lo perdido em você mesmo, ou fazê-lo sentir frio. Não quero
te fazer sussurrar meu nome às três da madrugada. Não quero suas lágrimas. Não
quero seu amor virgem.
E eu juro, eu adoraria desvendá-lo da maneira correta,
por camadas, com o maior carinho do mundo. Pois apesar de fria e morta, sou
capaz de enxergar sua aura misteriosa. Única. Intocada. O que me impede, amor,
é que meu estoque de curiosidade, paixão e esperança encontra-se esgotado.
Esgotado por muito tempo. Talvez oitenta anos. Talvez pra sempre. E eu não
quero mais, ao te abraçar pela cintura, precisar esconder lágrimas de luto pelo
que já se foi, e não posso recuperar.
E apesar de sorrir de satisfação ao lembrar de seu calor
de Marte, algo me impede de roubá-lo de si mesmo. E você apoia sua cabeça em
meu peito como se fosse pequeno. E eu te sussurro na escuridão:
“Fuja, pássaro intocado. Corra pela noite. Por sua alma.
Por sua liberdade. Por você.”
E você vai.
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