quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Conto De Ninar

Conto de Ninar

Amor, meu novo amor. Quero lhe contar uma história de dormir. O farei enquanto sou assombrada pelo encanto de sua aparência maravilhosamente fantasmagórica. Ela se funde com as sombras de uma madrugada iluminada pela lua cheia, indo embora. Você me pega pelos ombros e me afasta, mas giro em meus calcanhares para acompanhar sua saída com os olhos. Até a esquina onde desaparece. Então meu sorriso de esvai.

Antes de começar a história verdadeira, amor, preciso lhe contar sobre como não sabes o quão adorável és. Você me fitou por pouquíssimos segundos e esquivou-se rapidamente, como se eu fosse toda a beleza sob o céu, enquanto seus olhos cintilavam como galáxias, e seus lábios moviam-se como lava – você era o fantástico, o esplendoroso, o especial. Vi em seus olhos âmbar o que já esteve em meus olhos âmbar ao encarar um ser do inverno. E eu não sabia, envolvida por seu cheiro doce, se estava pronta para tornar-me o que você chamaria de “seu ser do inverno”.

Seres do inverno sugam esperanças com beijos. Eles são, para suas vítimas, as criaturas mais belas do universo. Seduzem-nas sem mais nem menos, quase sempre inesperada e magicamente, e lhes oferecem esperanças sobre um futuro que nunca acontecerá. Imagens de si mesmas em frente a uma montanha coberta de neve, correndo por uma floresta encantada, segurando sua mão para afastar o medo. Imagens de livros, discos... imagens de uma vida inteira. Como se permanecessem imutáveis e lhe transformassem no melhor de você. Para sempre.
Quando sugam sua alma com toda a força, segurando a vítima entre os braços, os seres do inverno morrem. Não por completo, mas quase. Desaparecem, deixando seus reféns antes virgens de amor desesperados e loucos como pássaros amedrontados. Eles sempre voltam. Uma, duas, três, quatro vezes. Então vão embora novamente, carregando toda a sua esperança consigo. Nesse ponto você se vê exausto, trêmulo, quase morto, mas respirando de alguma forma, impulsionado por livros, pós-punk e álcool.

Nesse ponto, então, eu peço desculpas por ter-me tornado um ser do inverno. E lhe conto que tudo o que sou faz parte de uma grande fantasia. Tudo o que sou diante de seus olhos, ao menos. Meus devaneios são frutos de pesadelos infinitos, noites incontáveis de um choro incessável e tentativas vãs de viver do ócio. Não é adorável. Não é bonito. Não é possível despertar-me emoções duradouras. E eu choro em seus braços inocentes pela morte de outro alguém.
Oh, sim, amo um cadáver. Amo o cadáver de alguém que esvaiu-se após quatro semanas. Da pessoa mais bonita, fantástica, literária que se possa imaginar. Do ser do inverno que me deixou desamparada naqueles dias de frio intenso, que pintou um céu azul e voltou para colori-lo de cinza. Do alguém que me fez descobrir as melodias e letras mais maravilhosamente tristes que existem no mundo. E que me fez escrever. E gritar em silêncio. E tentar desvendar mistérios. Alguém que não existe mais.

Não quero, deus me livre, tomar-lhe o brilho. Nem roubar quem és, nem deixa-lo perdido em você mesmo, ou fazê-lo sentir frio. Não quero te fazer sussurrar meu nome às três da madrugada. Não quero suas lágrimas. Não quero seu amor virgem.
E eu juro, eu adoraria desvendá-lo da maneira correta, por camadas, com o maior carinho do mundo. Pois apesar de fria e morta, sou capaz de enxergar sua aura misteriosa. Única. Intocada. O que me impede, amor, é que meu estoque de curiosidade, paixão e esperança encontra-se esgotado. Esgotado por muito tempo. Talvez oitenta anos. Talvez pra sempre. E eu não quero mais, ao te abraçar pela cintura, precisar esconder lágrimas de luto pelo que já se foi, e não posso recuperar.
E apesar de sorrir de satisfação ao lembrar de seu calor de Marte, algo me impede de roubá-lo de si mesmo. E você apoia sua cabeça em meu peito como se fosse pequeno. E eu te sussurro na escuridão:
“Fuja, pássaro intocado. Corra pela noite. Por sua alma. Por sua liberdade. Por você.”
E você vai.

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