Gato
Eu
escondi meu gato no bolso da jaqueta de couro, fechando-a até o pescoço. Sentia
o filhote de menos de dez centímetros acomodar-se entre o forro e meu peito, ao
lado esquerdo, bem sobre meu coração. A viseira de meu capacete estava
trincada, e aquele milimétrico furo era como um jato de vento gelado perfurando
meus olhos enquanto eu acelerava a caminho de casa numa manhã nublada de junho.
O
animal resgatado, que agora precisava ficar com a cabeça para fora da jaqueta caso
resolvesse se aninhar dentro dela, tornou-se um gato gordo, cinzento e sem nome
que passeava pela varanda logo abaixo da janela do meu quarto. Ele sumiu na
última sexta-feira.
É
bizarro porque, após uma série de eventos desafortunados como a perda de uma
chave, os trabalhos que esqueci que havia acumulado sobre a escrivaninha, os
pedidos de minha mãe para que eu ficasse em casa naquela tarde, um pneu furado
e um espelho rachado, eu passei a perna esquerda sobre o banco estofado de
minha moto e saí do terreno. Vi o gato de relance, aprumado sobre o muro ao
lado direito do portão.
No
final na rua, fui empurrado por uma caminhonete vermelha e barulhenta que
triturou minha perna, quebrando-a em dois lugares diferentes – no tornozelo e logo
abaixo do joelho. Quando cheguei em casa algumas horas depois, engessado e
sustentado pelos braços de meus pais, o gato não estava mais lá. Nem na
varanda, nem na janela, nem na jaqueta. Em lugar nenhum.
—
Você viu o gato? — perguntei à mãe antes de deitar.
—
Deve estar por aí... — ela respondeu, dando de ombros — Boa noite, filho.
—
Boa noite.
Recebi
30 dias de folga, sem nem pensar em tocar o pé no chão ou mover o gesso pesado.
Já se foram 12, e o gato não apareceu. Tinha sonhos sobre ele com uma
frequência assustadora. Quase sempre, sonhava que deslizava a perna boa pelo
lençol, sentindo sua textura e encontrando o gato encolhido, dormindo ao pé da
cama. Isso se repetia algumas vezes, até que eu deslizava a perna, mas não
encontrava o gato — apenas um corpo gelado que me agarrava fortemente com a mão
ossuda e escalava minha perna até chegar ao peito, sufocando-me em meu sono.
Acordei
assustado e ofegante no meio da madrugada, respirando com uma força exagerada
para sentir se meus pulmões funcionavam como antes — eles funcionavam.
Sentei-me na cama e fechei os olhos numa tentativa de parar os flashes do
pesadelo, que rodopiavam infinitamente pelo meu cérebro.
Quase
dois minutos após, ouvi algo raspar suavemente o vidro da janela. O gato
costumava fazer isso no inverno, quando queria entrar para se aquecer, mas
agora estava quente e abafado. Achei estranho, mas inclinei-me para mais perto
da cortina. O mesmo arranhar, agora quase uma batida inaudível.
Nutrido
pela certeza absoluta de que o gato havia finalmente retornado e arranhava a janela
para que eu a abrisse, levantei-me num pé só para fazê-lo. A imagem que já
havia visto durante algumas madrugadas antes dessa se projetava em minha
cabeça. Tinha certeza de que veria o gato ali, com as sobrancelhas franzidas
como quem espera há muito tempo. Abri a janela.
Não
havia nada.
Senti
ambas as rachaduras em meus ossos enquanto um calafrio gelado subiu da sola dos
meus pés até meu couro cabeludo pela coluna vertebral. Estagnei. O vento gelado
que bateu em minhas costas certamente não vinha da janela, que estava posicionada
logo à minha frente, mas causou arrepios que me fizeram estremecer
violentamente. Tentei virar-me devagar, primeiro os pés, depois o tronco, por
último a cabeça. De olhos fechados, todas as histórias fantasmagóricas que ouvi
durante a vida vieram à minha memória.
Abro
os olhos.
Ela
está ali.
A
mão ossuda de meus sonhos.
Pálida
e sem vida como se tivesse acabado de sair debaixo da terra.
É
a única coisa que vejo fora da sombra que se projeta dentro de meu
guarda-roupas.
Congelado
de pânico, sigo-a com os olhos até onde supostamente está a face da criatura.
Ela
sai das sombras.
Branca.
Os
ossos das maçãs do rosto, projetados para fora.
As
olheiras profundas e escuras que por um momento ocultam os olhos gigantes da
bizarra aparição.
Um
sorriso malicioso de dentes podres e fétidos que se abre cada vez mais, até
quase rasgar a pele que parece com papel de seda.
Os
olhos amarelos sobrenaturais do gato.
Sorrindo,
as órbitas oculares esbugalhadas, sobrevoa o piso lentamente.
Ela
vem até mim.