terça-feira, 22 de agosto de 2017

Íris

Íris

Hide My Face, Acid Ghost

Uma de suas íris é estranhamente inclinada à parte interna de seu olho. Foi um detalhe que demorei a perceber, capturado enquanto meu nariz tocava o seu. Em sua cama, eu lhe utilizava de travesseiro enquanto segurava seus punhos acima de sua cabeça, grudados no colchão. Aquele milimétrico estrabismo foi uma surpresa engraçada, que me conduziu a amar beijar suas pálpebras fechadas.

Foram os olhos que me encararam de volta, para dentro da alma, quando busquei segurança nas palavras que me consolavam, dizendo que ninguém iria embora. Ainda dilacera pensar que, por vários segundos, eu encarei aquela segurança firme defronte ao espelho, que refletia seus braços em meu entorno. Foi triste lhe ver indo embora naquela noite doída. Lembro de meu corpo doente, segurando sua mão fragilmente no trajeto de carro até a rodoviária.
Quando devaneio sobre a não-reciprocidade amorosa, penso em como sua mão pendeu por entre meus dedos enquanto eu resistia em soltá-la. Seu olhar, sólido, fixo no meu. Aquela força presencial me engana profundamente. Indecifrável.

O transtorno mental que assombra e deforma minhas memórias, transformando em pesadelos constantes meu tom de castanho favorito, algema meu desejo de esquecer as noites turbulentas em torno de meu conceito de “presença”, incompreendido por ti.
Doía e dói, brutalmente, o brilho que só retornava aos seus globos oculares ao mencionar outro nome, diferente do meu. Sorria defronte o impacto, encorajando-o a seguir. Chorava em segredo sob os cobertores, sentindo-o cada vez mais longe. Doía e dói, irracionalmente, que o ser abrigado por ti naquela noite de crises violentas, não podia ser eu. E dói, doía mais, sua indiferença e certeza de que, de longe, você não poderia me auxiliar satisfatoriamente.  Era meu corpo que trincava enquanto, com suas mãos, você juntava os cacos d’outro ser.

Transborda portar, nos olhos, o oceano de sentimentalismo onde mergulham estas partes possivelmente mentirosas de minhas lembranças. Onde se sentem as saudades que, quase sempre, ameaçam não ser devolvidas. As mesmas que me dão medo sobre o esquecimento defasado da feição daquele que foi minha casa. Da voz que me sussurrava amor. Das mãos que aqueciam as minhas. Do cheiro do cabelo dourado. Dos olhos. Íris. Pupilas que me encaravam.

Eu continuo com medo de mim.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Astrais

Astrais


Da canção que adquiria um formato espectral, atravessando as paredes do quarto, vindo se hospedar nos meus ouvidos. Da voz aguda que, subitamente, despertou as memórias que queimavam na parte mais funda da mente.  Tentei guarda-las depressa, fugindo entre os cobertores que não me permitiram dormir. Em minha cabeça, a armadilha insuportável e recorrente de lembranças aterrorizantemente detalhadas que eu tentava estancar. O medo de contaminá-las com a mágoa vaporosa emitida pelo sangue fresco do trauma.

A pureza da qual sentia falta. A expressão confusa do rosto que vi pela primeira vez. E como aquela voz se arrastou pela minha cabeça todas as noites após a primeira. O som limpo do violão triste, e a suavidade do corpo que, às vezes, o carregava nas costas. O sorriso que machucava minhas bochechas, e a paz que se estendia sobre minha alma inquieta após tanto tempo só. As flores no seu cabelo. As fotos antigas que me assombravam por não terem sido deletadas. Meu pequeno príncipe, seu casaco azul. O disco de 1973.

Todas as noites fora da classe. As árvores, os bancos de concreto. A última prateleira, que eu não consigo mais visitar. Você me esperando no fim do corredor. O frio, seu cachecol. Você acordando cedo com o sol. A endorfina que me movia nas tardes de inverno. Seus lábios trêmulos, quase intocados, tão meus. A expressão nos rostos dos amigos. A ilusão do mundo mágico que se privava aos blocos daquela universidade.

Como se tudo tivesse mudado quando crescemos para fora daquele espaço. Como se crescer doesse muito. Como se o amor fosse exclusivamente planejado para me matar, todas as vezes. Pior dessa vez. As lembranças antigas transmutando lentamente. Eu sentia nossos corpos inertes no meu tapete. Suas lágrimas. Seus braços me envolvendo por completo enquanto eu chorava sua partida sobre minha cama. A atmosfera mágica, subjetiva, tão nossa. Como se meu quarto fosse um templo e nós, como santos, pudéssemos dormir juntos durante a tarde toda.

Talvez você nunca entenda. O que senti quando cruzei sua porta naquela tarde. Os horrores sobre os quais eu me permitia chorar no seu colo. Como meu coração estava disparado quando você me cobriu na sua cama. E sua respiração acariciava meu rosto quando você deitou ao meu lado, com o nariz quase colado no meu. A fortaleza segura que eu visualizava em torno de mim. Os desenhos na parede. A urgência do beijo regado pelas lágrimas que eu escorri. Você por toda a parte. Seu rosto entre minhas pernas, seus lábios nas minhas coxas, seus olhos pedindo permissão. Da dor que me abateu quando precisamos sair tão rápido do meu lugar preferido. A última vez. Eu só queria ter ficado.

Segurando sua mão como se você ainda fosse meu. E te vendo ir embora. Como se eu fosse junto. Como se aqui nada restasse, senão essas memórias.  A mandíbula dolorida após choros silenciosos. A sensação de que meu peito rasga lentamente, tão real que parece remediável.  Suas fotos, a camiseta. A visão de sua silhueta na janela. Os sonhos assustadores, a taquicardia. A falta que eu nunca sei se é recíproca.  A lua cheia. Minhas lágrimas. Seu fantasma. Minha morte. Meu amor.