domingo, 1 de novembro de 2015

De Corpo, De Espírito

De Corpo, de Espírito

Ouvindo: When You Sleep, My Bloody Valentine

Às vezes imagino que o universo é sarcástico. Enquanto em minha mente o corpo é um complemento acidental da imensidão do espírito, naquela calçada suja ele se tornava objeto central. Entrei no jogo. Desfiz-me da armadura e ri de minha própria sorte. Aparentemente, o corpo que acidentalmente complementa meu espírito despertava naquela criatura literalmente diabólica a espécie de compaixão que pode ser vista nos olhos – mesmo com as íris cobertas por plástico colorido – e sentida nas mãos que acariciavam o topo de minha cabeça. Me arrependi no momento em que neguei o convite que não imaginei ou imaginava que chegaria. Novamente, as paredes invisíveis criadas para separar corpos (e mentes) fizeram com que meu subconsciente sentisse que era errado, independente do sentimento que quase acendia no peito.

Defensora da insignificância corpórea que sou, não me foi relevante enxergar de longe aquelas mãos em cabelos conhecidos, mas que não eram meus. Como uma agulha perfurando a pele, a dor foi pungente e localizada por dois segundos, e sumiu. Sabia que os sentimentos continuavam estáticos, ainda amando, ainda querendo bem.  
Mas me senti só. O tipo de solidão que vai além, novamente, do corpo físico. Solitária na mente. Solitária na minha imensidão inteira. Todas aquelas portas no cérebro, e nenhuma que levasse a alguém específico. Nenhuma que me fizesse querer correr para buscar proteção.
Tentei. Uma. Duas vezes. A primeira, já familiar, me fez rir internamente – estava sendo protegida por alguém que estava fardado como um soldado quando protege a nação. A segunda me fez esquivar e mover os lábios enquanto os pensamentos vagavam por qualquer lugar que não fosse nosso beijo. Não queria estar ali, e levei alguns minutos para lembrar do termo que queria. Era “arrependimento”.

No caminho de volta, longe da confusão, o céu ficava gradualmente mais claro. Não trazia comigo o sentimento que tive na primeira vez, há quase um ano, quando a lua estava no céu lilás e eu comemorava uma paixão completamente maluca. Desejei a mesma luz no coração, e lembrei que ela não estava ali, nem nunca voltaria – não se pode pisar no mesmo rio duas vezes; o rio muda, quem o adentra também. O que permaneceu foi a confusão de um amor sem base, mal resolvido, que aparentemente ainda existe. A sensação de ter levantado as expectativas mais do que deveria. E o cheiro de fumaça.
Sorri quando o sol atravessou a cortina de renda, vindo parar no meu rosto. Era lindo. Transpassava todas as flores e folhas, criando sombras dançantes na parede. “Bata na minha janela”, escrevi brincando. E você bateu.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Unde Salus

Unde Salus

Não preciso ser salva
em minha mente sou maior 
que meu corpo e que seus ossos

Minha casa é qualquer lugar 
sobre as flores, sob a chuva
sob os galhos, sobre o jardim

O que escorre de meus olhos
são galáxias, purpurina
pétalas, nanquim e tinta

Não preciso ser salva
quem salva
agora
sou...

sexta-feira, 12 de junho de 2015

d'O Retorno

d'O Retorno

Ouvindo: Please Come Home, The Cure

Quando voltei do mar após o tempo que beirou um ano minha casa parecia diferente. O carpete pareceu mais claro, as cortinas pareceram mais azuis e as janelas pareceram alguns centímetros mais baixas...  era o tempo que passava por minha torre, atravessando a renda que cobria as vidraças e chegando à mente, à expressão facial, ao cabelo cada vez mais longo.
Foi necessário um bocado de semanas e outro bocado ainda maior de dias para que voltasse a me habituar às cores do tapete vermelho e azul, à moldura lilás do quadro e à textura da estante bagunçada.

Junto com o tempo que continuava atravessando a mesma renda, na mesma torre, eu cresci. A casa, que antes era tudo que me mantinha segura dos temporais físicos em que trovões fazem sons assustadores, se estendeu a um prédio maior e, logo após, a braços maiores.
Junto com os braços, vieram os temporais emocionais que faziam chover e trovoar pensamentos de gente quase grande. E de leve, mais leve que o tempo, passei a viver noutra casa.
Adorava as estrelas fluorescentes no teto... mas amava aqueles olhos castanhos se estreitando para os meus. Os fiz meu lar. Você foi minha casa. (Não sei até que ponto continua sendo.)

Casa é o que nos protege do temporal e do frio. De quebra, até da ventania que bagunça os pensamentos. Era nos cabelos castanhos que enterrava meus pensamentos sombrios. E era na sua mente, tão similar à minha própria, que estes mesmos pensamentos faziam algum sentido.
O risco que corremos quando transferimos quatro paredes sólidas a uma mente autônoma, entretanto, deveria ter sido tratado com mais cuidado.
Vi minha casa indo embora algumas vezes. Posso dizer, talvez melhor do que ninguém, quão doloroso é sentir uma agulha perfurando a carne – mas também posso explicar, ainda convictamente, que o sentimento de não ter um chão onde pisar e uma porta para adentrar supera a sensação anterior em todos os sentidos. Era aquele medo que fazia as mãos tremerem, a garganta apertar e o estômago revirar mil vezes por minuto. Ver-te indo. Meu lar.

Recentemente, vi meu lar retornando. Como quando saí do mar e atravessei quase 500km de volta, a sensação primordial foi  aquela familiar fusão de calmaria, estranhamento, conforto e dificuldade de adaptação – tudo ao mesmo tempo.
A diferença entre minha chegada ao lar físico, aquele com portas e janelas, era que eu tinha a certeza de que, não importava aonde eu fosse, era ali que ele permaneceria. E quando a você, meu bem... eu não pude ter certeza de absolutamente nada.

O medo que sinto atravessa minha mente como uma flecha, e às vezes sinto como se este mesmo temor se pusesse sobre todos os planos sussurrando que nenhum deles dará certo. Nas noites escuras é difícil ignorar todos os demônios que às vezes sibilam, às vezes gritam, sobre tudo que tem uma chance mais do que gigantesca de desmoronar. Dizem principalmente que só devo aguardar a próxima partida, que é moralmente errado abraçar com tanta força um ser que já entregou um pedacinho de si a outro (embora eu acredite profundamente que a história de “pertencer” não exista).

Dizem que segundas chances são válidas. Nunca disseram nada, entretanto, sobre as terceiras. As quartas. As quintas chances... E eu, que sempre fui tão autossuficiente, mantenho aquele mesmo pé atrás, medrosa como nunca, enquanto mais uma vez coloco um pedacinho do próprio coração para fora da manga.
E embora o desejo profundo seja atirar-me do abismo sobre ti novamente, levando todo o susto e toda a confusão, o que ordenam as regras é a distância parcial, a não resolução completa, o cuidado racional.

Não precisa prometer... mas não precisa partir. Não precisa levar embora a fortaleza que me abraça. Não precisa cruzar todas as rodovias do mundo.
Não sem mim.
Você é minha casa.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Cristal

Cristal

Ouvindo: Nude, Radiohead

Fotografei o pôr-do-sol há exatos doze meses. Um ano. Não foi proposital... só coincidiu cruelmente com o dia em que nos encontramos pela primeira vez.
O mundo mudou muito pouco desde então. As folhas da nogueira sob minha janela continuam ficando laranjadas. Elas caem no Outono. O sol continua se ponto lindamente, no exato momento em que passo pela estrada às seis e meia da noite. As vidraças ficam embaçadas de madrugada. Venta durante a tarde. E faz frio durante a noite.

A imutabilidade que a natureza apresenta depois de tantas reviravoltas me afronta. O lembrete natural e pungente de que tudo permanece imóvel no passado, indiferente. Não importa com quantas ou quais metamorfoses a mente tenha que lidar.
Agora, sou um bocado frágil. A chuva diluiu a esperança. As estradas não parecem tão promissoras. Descobri que a profissão não apetece, não acalenta. Prefiro abaixar ao invés de levantar o queixo enquanto atravesso um corredor. E parecer vulnerável não incomoda.
Enquanto tudo desandava, agarrei com força a premissa de que você era o culpado. De que você, com todas as suas particularidades, havia me assassinado. Peço perdão por isso. Quando a vida vai mal e estamos sozinhos, todo o ressentimento precisa pousar sobre algo. Hoje, eu sei, ninguém teve culpa.

Privar-me-ia da habilidade de analise se pudesse, mas analisar é o que faço quando não tenho sono às quatro da madrugada. Algumas dessas analises felizmente acalentam meu coração, sendo assim, achei que seria nobre dividi-las:
Abril passado foi uma utopia fantástica. Tudo estava completo. Você era parte do complemento, mas não todo o preenchimento do pacote. Impossível calcular quantas noites de sono perdi por causa de uma ridícula dor nas bochechas, os pensamentos correndo como loucos em torno do personagem que eu nunca havia escrito.
O dia em que a primeira interrupção ocorreu – aquela que abriu passagem para tantas outras – coincidiu com a agregação de conhecimento devido à universidade, que muitas vezes apresentava dilemas ou questões que confrontavam meus credos, minhas ideologias, minhas opiniões.  Via-me desamparada, mesmo que inserida no ambiente que antes aparentava tanta confiança, tanta inovação, tanto suporte.
Observando de longe, durante o período em que ficamos afastados, seus braços sempre pareceram o porto seguro que me embalaria e acalentaria quando eu sentisse medo. Não sei o motivo exato. Ainda prefiro acreditar que nosso relacionamento não tem (ou teve) base no encontro físico, mas sim mental. O que me perturbava, de certa forma, o perturbava. A capacidade de compreensão era nossa característica fulminante. Permitia uma quase telepatia, aquela troca de olhares que transpareciam o que mil palavras não conseguiriam.
A falta de compreensão por parte do resto do mundo foi o fator base. Da necessidade, digo. A necessidade um do outro. E por mais que muitas vezes a necessidade engane, confundindo-se com “amor”, também fica claro que por ali pairava certa compaixão. Acredito que a necessidade por si só não me faria sentir um remorso de calibre tão alto quando pensava na possibilidade de que você não teria ninguém com quem compartilhar a dor que o afligia quando eu não estivesse por lá. E o desejo físico. Autoexplicativo.
Sempre que te via longe, a imagem que você transparecia era a de suporte. Fortaleza, muralha. Proteção. Protegendo-me. A única criatura viva que já havia ousado compreender minha mente, dor e aflição. A frase “preciso de você” não era mero apetrecho. Era real, se provava real. Acredito que para ambos.
Mas obviamente, você ali não era capaz de resolver tudo. E eu não era capaz de resolver seu tudo. A compreensão era uma arma poderosa, mas os dias iguais tornavam-se monótonos, monótonos, monótonos... queria ter feito tudo com você, mas convenhamos, como dois loucos perdidos dariam a volta ao mundo sem dinheiro pra gasolina? A realidade sempre foi dura demais com os contos de fadas.

Temos mentes de cristal, amor. O cristal é tão fino, tão frágil. Talvez apenas não tivéssemos prática com o manuseio. Coisas como esta acontecem o tempo todo. Eu não tive culpa. Você não teve culpa. Foram só as influências, as circunstâncias, as consequências –  como dizem na Filosofia.
PS: Neste texto não há conclusão. Apenas fatos. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A Ninfa e o Monstro

A Ninfa e o Monstro

"Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. Se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti." (Friedrich Nietzsche)

A casa está vazia. O farfalhar das folhas é o único som presente. As cortinas de renda permanecem estáticas sobre as venezianas abertas. A constelação fluorescente no teto emana uma luminescência azulada. Olhos azuis me encaram do pôster na parede.
É tarde. Quase três. O horário em questão faz explodir memórias que tento há, quase trinta dias, ignorar. A tarefa mostra-se impossível perante à solidão escura.

E não há palavras que acalentem, abraços que afastem, mãos que espantem ou canções que aliviem A Ideia. A Ideia. A Ideia que anula qualquer organismo lógico semelhante e sussurra que tudo sumirá comigo em breve. Enquanto não some, porém, vaga por minha mente como uma alma penada sem direção.
Diferente. Desconfortável. Aterrorizante. Desconhecido. Poderia passar a eternidade buscando palavras e tenho certeza absoluta de que nenhuma retrataria com exatidão o sentimento abrasador que mata o que existe – se é possível que ainda haja algo – em meu coração.
A fusão de ódio, saudades e raiva das saudades, tolice, masoquismo, desejo de vingança e (talvez) empatia se torna uma bola de neve pesada e insistente, pronta para despencar e extinguir a chama minúscula de esperança que tento corajosamente manter acesa.

O monstro de asas negras reaparece para sussurrar ao pé de meu ouvido. Ele conta histórias sobre sentimentos que definham no canto escuro do quarto que poderia ser minha mente. Aproxima-se lentamente, respirando ruidosamente e propagando um odor familiar. Força memórias sobre as quais não tenho controle. Faz-me divagar sobre elas.
Ele costuma me pegar durante o sono, quando tudo parece tranquilo. Traz a tona a sensação de braços em volta de minha cintura, um coração acelerado batendo contra o meu próprio, do perfume não tão familiar, do medo, da angústia, da ausência de necessidade – pois tudo que eu desejava estava parado diante de mim afinal –, da falsa esperança antes do retorno do ceticismo comum. Acordo desesperada, a taquicardia sempre presente, os olhos esbugalhados, a respiração descompassada e um turbilhão de pensamentos suicidas.

Outra parte de meu ser, que dá-se pela janela minúscula no mesmo quarto citado anteriormente, tenta segurar meus punhos com seus dedos de cetim. A ninfa da esperança, que imagino como, literalmente, uma ninfa, diz-me suavemente com sua voz de anjo que devo continuar andando. Que os vislumbres do passado não passam do som de passos que me seguirão para sempre e que aprenderei, com o tempo, a ignorar por completo. Que ainda há chão a ser desbravado, que a coragem acesa em meu peito nunca foi apagada por completo. Que não tive, tenho ou terei medo de cruzar esse mundo sozinha. Que tudo está maravilhosamente bem há muito mais tempo do que horrivelmente ruim, apesar de a segunda opção ter-se feito mais frequente nos últimos meses.
Quando saem por entre seus lábios os sussurros sobre perdão, porém, o conflito começa.

O mesmo monstro de asas negras salta de um dos cantos da sala com uma ferocidade superior a qualquer adjetivo. Com suas garras contorna os pulsos da ninfa e grita, rude, todo o ódio que mantinha trancado dentro de si. Grita sobre uma vida arruinada, sobre um coração partido. Sobre olhares quebrados que se cruzaram por tantos dias, agora cansados. Sobre promessas. Sobre o ser que, após pisotear seu semelhante até a quase morte segurando mãos alheias e escondendo delas toda a verdade por trás do “amor” que sentia, apropria-se do direito de condenar a mentira. Sobre a espera pela resposta que nunca veio. Sobre abrir mãos de toda a liberdade que havia conquistado para acolhê-lo de volta, mesmo em pedaços. Sobre a covardia que teme a verdade e, novamente, sobre promessas. Sobre a ausência do amor que se dizia recíproco nas piores noites de sua ‘protegida’. Sobre egoísmo. Egocentrismo. Materialismo.
A ninfa cai em prantos, ainda apontando os dias de um passado distante, onde o amor poderia, supostamente, ter sido recíproco. Tenta unir, com as mãos frágeis, os pedaços do coração antes inteiro, completo, e estendê-lo a outro, que acaba cortado até a alma pela frieza dos cacos brilhantes. Começa uma busca desesperada pelo positivo, pelo feliz, pelo passado, mas seus olhos estão cada vez mais cansados, suas veias cada vez mais finas e seus ouvidos cada vez mais surdos pelas palavras pessimistas entonadas gravemente em conjunto ao som do baixo.
O monstro senta-se, impotente, ao seu lado. Cansado da luta. O coração latejando de dor. Ambos me encaram friamente, à espera de uma decisão. Acordo.

Por um momento sou pega pela claridade inesperada das estrelas fluorescentes, mas tudo continua estático, igual. Me pego sozinha, na casa vazia, esperando o torpor terminar. Sento-me num pulo, o cansaço mental novamente presente, numa tentativa desesperada de chorar. Mas as lágrimas mantem-se firmes, presas numa caixa sem expressão, junto com tudo que me foi levado embora. E a fantasia se esvai. E a situação é a mesma. E tudo parece igualmente ruim. Monstro e ninfa, ninfa e monstro. Presos no quarto que é minha mente. Lutando eternamente. Essa guerra sem fim.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Inferno

Inferno

"Now I'm trying to wake you up, to pull you from the liquid sky,
'cause if I don't we'll both end up with just your songs to say goodbye."

Corri por tanto tempo que estava crente de que havia alcançado uma distância segura. Atravessei vales, rios e florestas, alcancei o pico mais alto que em minha mente existia. Respirei o ar puro do topo e tive a certeza de que estava finalmente limpa. Tudo para cair pela centésima vez na lava escaldante do inferno que pensei ter deixado para trás.

Existe um tipo muito específico de desespero, que funde raiva, dor e saudades insuportáveis numa grande nuvem negra de tempestade. Ela vem lentamente do horizonte, mais amedrontadora que um ciclone, arrancado todo o resquício de felicidade que encontra pela frente. E quando digo todo, penso no sentido literal da palavra. Amigos, colos, beijos, mãos, perfumes, canções, livros... Carrega tudo com ela, fazendo com que a massa obscura presente em sua composição se expanda mais e mais, até cobrir minha cabeça, meu corpo, minha alma.

A nuvem costumava surgir com frequência naqueles momentos onde o quarto é escuro e você tenta descansar, fechando os olhos. Hoje sua aparição é mais frequente – fato que não a torna mais confortável, e sim perturbadora. Não consigo escapar de seus relâmpagos, mesmo que feche os olhos com toda a força que tenho. Ela nunca vem sozinha. Sempre traz consigo os enjoos, tremores, frio e a sensação horrenda de que meu um metro e sessenta e três passou a um milímetro de repente (o que infelizmente não é verdade – se fosse, procuraria me esconder no jardim e viver com as formigas para sempre).

O principal sentimento que me cerca nesse inferno particular é o medo absoluto. Acredito que o medo seja menos cruel a quem costuma senti-lo mas, céus, eu nunca tive medo, e agora ele se apodera de meu ser como febre espanhola. Traz à tona imagens de caminhos separados, da única coisa que foi meu “lar” andando para longe. Muito em breve. Ele sibila ao pé de meu ouvido que as horas se tornaram dias, e que os dias se tornaram meses, e que os meses logo tornar-se-ão um ano inteiro jogado no lixo oscilando por ele. O ano que bateu o recorde de mais ‘adeus’ do que ‘olás’.
O desespero que o medo me causa é tão fulminante, tão forte, que quando ataca poderia facilmente me conduzir aos pés alheios implorando por perdão – o perdão por um crime que nem sequer cometi.

Depois, vem a raiva. Raiva porque não fiz nada de errado, propriamente dito. Raiva porque ocultar informação não é mentir. Raiva porque me foi feita uma promessa agora descumprida. Raiva porque ninguém é obrigado a ficar parado enquanto o outro traça uma trajetória segurando mãos de personagens terciários. Ferve em meu peito a vontade de gritar-lhe sobre masoquismo, egoísmo. Sobre o frio que me deixou sentido por tantas vezes. Sobre covardia. Vaidade. Egocentrismo.
Mas logo cessa. Porque no fundo tudo o que berrei não pareceram ofensas, e sim partes da composição do ser que não consigo, mesmo que tente com toda a força, odiar.

E, por fim, as saudades...
É cortante, doloroso e pungente estar preso num escudo que te impede de libertar-se das memórias agregadas ao cérebro. Principalmente quando o escudo em questão é meu próprio corpo. Montado por minha pele pálida, minha cintura estreita, meus cabelos longos e principalmente minhas mãos pequenas.  
Hilário pensar que não houve nada, mas explosivamente doloroso correr os dedos sobre esse minúsculo pedaço de renda branca e imaginar que seus punhos fortes jamais a farão em pedaços. Pesaroso, ao ver como meu cabelo reflete mechas cobre ao sol, lembrar-me de meus dedos transpassando seus próprios fios, puxando-os delicadamente com as sobrancelhas franzidas. Arrebatador pensar na facilidade com que ele me puxava para perto, ambos os braços contornando minha cintura e polegares massageando minhas costelas.
Dá vontade de chorar. Gritar. Chamar para perto. 

Não quero, ao atravessar aqueles portões, ter a mesmíssima sensação que tive há cinco meses. Não quero os olhos castanhos se estreitando com indiferença. Não quero fazer uso de minha expressão neutra novamente. Não quero corações partidos. Não quero corredores que portam memórias. Não quero esquivar aqueles olhares dolorosos de mundos que se separam.
Quero abraços. Histórias. Aventuras, promessas, estradas, gasolina. Quero amor fulminante. Quero meu abrigo de volta. E eu sei, com toda a certeza, como ele se chama.
(só não sei, dessa vez, sobre a costumeira volta)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Matéria

Matéria

Hoje há um lindo céu. Todas as estrelas, ontem ocultas pela névoa, brilham tanto que ofuscam os olhos. O silêncio é substituído por sons de folhas e insetos dançantes, e o caderno aberto sobre a escrivaninha ainda mantém em segredo minhas confissões de gratidão.

Existe agora, após uma quantia exata de dias, horas, segundos, uma espécie de conforto na quase-tristeza que me cerca. Há quase-exatas 24 horas, quando tudo ocorreu novamente como um dejavú ou um pesadelo que sempre retorna para tomar-lhe o fôlego, meu coração disparou. Por cinco minutos. Os cinco minutos da surpresa pós esquecimento ou ceticismo sobre algo que desde o início, eu sabia, aconteceria de novo. O diferente, desta vez, foi que eu soube exatamente para onde correr.
Abri a janela. Aspirei profundamente as partículas geladas. Lavei a alma. Sem lágrimas.
Eu, sozinha. Eu, inteira. Eu, independente. Forte. Corajosa. Nascida em batalha. Eu. De verdade. O que fui antes, numa versão aperfeiçoada.

Quando observo as constelações iluminadas com os olhos transbordando em lágrimas de vitória, confusão, tristeza, conforto e um turbilhão de sentimentos tão infinitos como o universo, sorrio tranquilamente. Pensando que a poeira das estrelas que brilham sem motivo, sem consciência, sem questionamentos, é a mesma que molda meus ossos proeminentes. Que o ar que sopra as asas das centenas de insetos invisíveis é o mesmo que preenche meus pulmões. Que o sangue pulsando por minhas veias continua sendo bombeado graças ao cuidado de centenas, milhares, milhões de seres humanos.
Cruzando os braços arrepiados, ainda sorrindo, me dou conta de que nem eu, nem o universo sabemos das razões ou consequências de nossa própria existência. Conclusão que não leva embora o fato de sermos infinitos. Intrigantes e belos e tristes e maravilhosos. Sem saber de absolutamente nada.

Dou-me conta de que todos, em toda a parte, felizes ou não, conectam-se entre si. E incríveis, exatamente como são, conectam-se, juntos, ao universo. 
Somos, no fim, frutos da mesma matéria.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

São Quase Três

São Quase Três

Ouvindo: Nothing At All, Gentle Giant

Eu dormi demais, e já são quase três. São quase três e o céu faz jus, sob uma espessa camada de neblina alaranjada, ao meu estado de espírito. É escuro, frio, pálido e estático. Sem vento, como se uma espécie de força sobrenatural abraçasse árvores e seus galhos fortemente, não cedendo espaço a movimentos bruscos, implorando por calmaria. Em algum lugar, sob todas as nuvens e serração, escondem-se as estrelas cujo pó passeia por meus ossos e, claro, minha doce companheira Lua. O ar que preenche o jardim sob minha janela aberta transporta o mesmo cheiro frio e confortável do inverno. E agora sim, já são três.

Ouço o sussurro suave que se mistura ao manso dedilhar de cordas de aço, murmurando calma. Calma. Calmas. Contando-me sobre o orgulho da (suposta) força estratosférica que tem fluído por minhas veias no último mês. Seus lábios se arqueiam como uma linha reta que, de repente, adquire forma. Os meus são salgados por lágrimas.
Porque eu “tenho me saído bem”. Bem, com seus braços em minha volta, sob enormes nuvens cinzentas de chuva. Bem, me sentindo gigantesca com sua cabeça apoiada em meu peito. Bem, brincando de compor canções. Bem, até ficar sozinha. E eu tenho estado muito sozinha.

Agora, na solidão escura cercada por neblina, minha mente se enche de pensamentos sobre aquele que provavelmente, nesse exato momento, acelera alguma coisa por uma rua vazia. Vento em seu rosto, vento congelando suas mãos. Vento. Céu. Estrada. Como a bela cena do romance que nunca escrevi. Nem presenciei.
E memórias. Memórias ainda frescas sobre o perfume que pela primeira vez me pareceu familiar. Sobre mãos tão exatas. Braços tão grandes me envolvendo por completo em meio a tantas pessoas que não faziam ideia sobre a felicidade que rompia meu peito e me dava vontade de gritar. Era lindo. Especial como me parecia nos primeiros dias. Naquele momento, ignorei todo e qualquer pensamento que beirava sensatez, que gritava sobre a outra garota o esperando em outro canto do país e sobre meu próprio garoto, me esperando do lado oposto da cidade. Rendi-me aos abraços apertados, às canções que jamais serão simplesmente “canções” e à vontade fulminante que ficara presa por tantos e tantos dias em meu peito e era, enfim, libertada. Mesmo que não completamente.

Quando voltava para casa naquela mesma madrugada, com o sol apontando seus primeiros raios e nuvens ficando lilases e cor de rosa, sentia como se tudo já tivesse sido resolvido. E apesar da dor que sufocava todos os meus músculos após horas ininterruptas de pulos e danças que não existem, minha mente estava calma como as folhas do jardim estão agora. E uma estreita tira de Lua sorria no topo, me observando timidamente. “Viu? Eu resolvi as coisas.” Sussurrei. E ela não respondeu.

Agora, por detrás das nuvens, tenho certeza que essa mesma Lua observa de algum ponto minha total certeza sobre algo que deveria ter sido mantido para sempre no patamar da INcerteza. Ela ri audivelmente de meu pavor enquanto imploro “por favor, não me faça escolher...”.
Porque se escolhesse, Lua, seria ele. Seria ele para sempre. E, para mim, ele não existe. Não pode existir. Porque ele foi embora com ela; escolheu ir embora com ela. E me deixou na escuridão. Merecendo ser abandonado de volta.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Conto De Ninar

Conto de Ninar

Amor, meu novo amor. Quero lhe contar uma história de dormir. O farei enquanto sou assombrada pelo encanto de sua aparência maravilhosamente fantasmagórica. Ela se funde com as sombras de uma madrugada iluminada pela lua cheia, indo embora. Você me pega pelos ombros e me afasta, mas giro em meus calcanhares para acompanhar sua saída com os olhos. Até a esquina onde desaparece. Então meu sorriso de esvai.

Antes de começar a história verdadeira, amor, preciso lhe contar sobre como não sabes o quão adorável és. Você me fitou por pouquíssimos segundos e esquivou-se rapidamente, como se eu fosse toda a beleza sob o céu, enquanto seus olhos cintilavam como galáxias, e seus lábios moviam-se como lava – você era o fantástico, o esplendoroso, o especial. Vi em seus olhos âmbar o que já esteve em meus olhos âmbar ao encarar um ser do inverno. E eu não sabia, envolvida por seu cheiro doce, se estava pronta para tornar-me o que você chamaria de “seu ser do inverno”.

Seres do inverno sugam esperanças com beijos. Eles são, para suas vítimas, as criaturas mais belas do universo. Seduzem-nas sem mais nem menos, quase sempre inesperada e magicamente, e lhes oferecem esperanças sobre um futuro que nunca acontecerá. Imagens de si mesmas em frente a uma montanha coberta de neve, correndo por uma floresta encantada, segurando sua mão para afastar o medo. Imagens de livros, discos... imagens de uma vida inteira. Como se permanecessem imutáveis e lhe transformassem no melhor de você. Para sempre.
Quando sugam sua alma com toda a força, segurando a vítima entre os braços, os seres do inverno morrem. Não por completo, mas quase. Desaparecem, deixando seus reféns antes virgens de amor desesperados e loucos como pássaros amedrontados. Eles sempre voltam. Uma, duas, três, quatro vezes. Então vão embora novamente, carregando toda a sua esperança consigo. Nesse ponto você se vê exausto, trêmulo, quase morto, mas respirando de alguma forma, impulsionado por livros, pós-punk e álcool.

Nesse ponto, então, eu peço desculpas por ter-me tornado um ser do inverno. E lhe conto que tudo o que sou faz parte de uma grande fantasia. Tudo o que sou diante de seus olhos, ao menos. Meus devaneios são frutos de pesadelos infinitos, noites incontáveis de um choro incessável e tentativas vãs de viver do ócio. Não é adorável. Não é bonito. Não é possível despertar-me emoções duradouras. E eu choro em seus braços inocentes pela morte de outro alguém.
Oh, sim, amo um cadáver. Amo o cadáver de alguém que esvaiu-se após quatro semanas. Da pessoa mais bonita, fantástica, literária que se possa imaginar. Do ser do inverno que me deixou desamparada naqueles dias de frio intenso, que pintou um céu azul e voltou para colori-lo de cinza. Do alguém que me fez descobrir as melodias e letras mais maravilhosamente tristes que existem no mundo. E que me fez escrever. E gritar em silêncio. E tentar desvendar mistérios. Alguém que não existe mais.

Não quero, deus me livre, tomar-lhe o brilho. Nem roubar quem és, nem deixa-lo perdido em você mesmo, ou fazê-lo sentir frio. Não quero te fazer sussurrar meu nome às três da madrugada. Não quero suas lágrimas. Não quero seu amor virgem.
E eu juro, eu adoraria desvendá-lo da maneira correta, por camadas, com o maior carinho do mundo. Pois apesar de fria e morta, sou capaz de enxergar sua aura misteriosa. Única. Intocada. O que me impede, amor, é que meu estoque de curiosidade, paixão e esperança encontra-se esgotado. Esgotado por muito tempo. Talvez oitenta anos. Talvez pra sempre. E eu não quero mais, ao te abraçar pela cintura, precisar esconder lágrimas de luto pelo que já se foi, e não posso recuperar.
E apesar de sorrir de satisfação ao lembrar de seu calor de Marte, algo me impede de roubá-lo de si mesmo. E você apoia sua cabeça em meu peito como se fosse pequeno. E eu te sussurro na escuridão:
“Fuja, pássaro intocado. Corra pela noite. Por sua alma. Por sua liberdade. Por você.”
E você vai.