Astrais
Da canção que adquiria um formato espectral, atravessando
as paredes do quarto, vindo se hospedar nos meus ouvidos. Da voz aguda que,
subitamente, despertou as memórias que queimavam na parte mais funda da mente. Tentei guarda-las depressa, fugindo entre os
cobertores que não me permitiram dormir. Em minha cabeça, a armadilha
insuportável e recorrente de lembranças aterrorizantemente detalhadas que eu
tentava estancar. O medo de contaminá-las com a mágoa vaporosa emitida pelo sangue
fresco do trauma.
A pureza da qual sentia falta. A expressão confusa do rosto
que vi pela primeira vez. E como aquela voz se arrastou pela minha cabeça todas
as noites após a primeira. O som limpo do violão triste, e a suavidade do corpo que, às
vezes, o carregava nas costas. O sorriso que machucava minhas bochechas, e a
paz que se estendia sobre minha alma inquieta após tanto tempo só. As flores no
seu cabelo. As fotos antigas que me assombravam por não terem sido deletadas. Meu
pequeno príncipe, seu casaco azul. O disco de 1973.
Todas as noites fora da classe. As árvores, os bancos de
concreto. A última prateleira, que eu não consigo mais visitar. Você me
esperando no fim do corredor. O frio, seu cachecol. Você acordando cedo com o
sol. A endorfina que me movia nas tardes de inverno. Seus lábios trêmulos, quase
intocados, tão meus. A expressão nos rostos dos amigos. A ilusão do mundo
mágico que se privava aos blocos daquela universidade.
Como se tudo tivesse mudado quando crescemos para fora
daquele espaço. Como se crescer doesse muito. Como se o amor fosse
exclusivamente planejado para me matar, todas as vezes. Pior dessa vez. As
lembranças antigas transmutando lentamente. Eu sentia nossos corpos inertes no
meu tapete. Suas lágrimas. Seus braços me envolvendo por completo enquanto eu
chorava sua partida sobre minha cama. A atmosfera mágica, subjetiva, tão nossa.
Como se meu quarto fosse um templo e nós, como santos, pudéssemos dormir juntos
durante a tarde toda.
Talvez você nunca entenda. O que senti quando cruzei sua
porta naquela tarde. Os horrores sobre os quais eu me permitia chorar no seu
colo. Como meu coração estava disparado quando você me cobriu na sua cama. E
sua respiração acariciava meu rosto quando você deitou ao meu lado, com o nariz quase colado no meu. A fortaleza
segura que eu visualizava em torno de mim. Os desenhos na parede. A urgência do
beijo regado pelas lágrimas que eu escorri. Você por toda a parte. Seu rosto
entre minhas pernas, seus lábios nas minhas coxas, seus olhos pedindo permissão.
Da dor que me abateu quando precisamos sair tão rápido do meu lugar preferido.
A última vez. Eu só queria ter ficado.
Segurando sua mão como se você ainda fosse meu. E te
vendo ir embora. Como se eu fosse junto. Como se aqui nada restasse, senão
essas memórias. A mandíbula dolorida
após choros silenciosos. A sensação de que meu peito rasga lentamente, tão real
que parece remediável. Suas fotos, a
camiseta. A visão de sua silhueta na janela. Os sonhos assustadores, a
taquicardia. A falta que eu nunca sei se é recíproca. A lua cheia. Minhas lágrimas. Seu fantasma. Minha
morte. Meu amor.
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